
Em uma tarde de março de 2007, Estefânia ingressava em um hospital municipal no interior de Santa Catarina. Entrara em trabalho de parto horas antes e fora levada à emergência por uma vizinha. Carregava uma barriga pesada que lhe tirava o fôlego todas as noites quando se deitava. Essa era a sua quarta gestação.
A certeza de mais um filho homem lhe causava arrepios, sendo ela a única mulher em seu núcleo familiar. Ao menos, a prole masculina daria conta do negócio agrário que a família mantinha há mais de 30 anos, atividade que fora iniciada pela geração anterior.
Na sala de parto, pensava no infortúnio de não ter conseguido localizar o marido Oswaldo, que havia levado a safra de folhas de fumo à fábrica que lhe comprava a produção. Ele demoraria para chegar, assim era todas as vezes que ele fazia esse trajeto. Era um homem matuto, beirando os 40 anos, e fora disciplinado seguindo modelos educacionais conservadores. Recusava-se a carregar um celular na cintura. Dizia que passara a vida toda sem esse apetrecho e que não seria agora que precisaria de um. Apesar de já ter idade para tal, o filho mais velho não o acompanhou: aos 17 anos, ele tornava-se o responsável pela produção quando o pai se ausentava.
Na manhã seguinte, Estefânia deu à luz, e chamou-o de Rodrigo. O que ela não sabia é que o cérebro do menino na verdade era o de uma menina.
Os anos se passaram e, aos três anos de idade, o menino abria o armário da mãe e se vestia com suas roupas. A primeira vez que Estefânia o viu tentando entrar em uma de suas camisas ela achou graça e o levou a seus brinquedos masculinos, que foram herdados de seus irmãos maiores, os quais, pela diferença de idade, já não brincavam mais.
As visitas de Rodrigo ao guarda-roupa da mãe tornaram-se frequentes e ela escondia do marido o interesse do menino por seus artefatos. A cada ano, Rodrigo se interessava ainda mais pelo universo feminino e, quando tinha cinco anos, seu pai o viu segurando a cortina da sala na cabeça como se fosse um véu. O menino repetia palavras desencontradas como se estivesse em uma cerimônia de casamento, na qual ele era a noiva. Oswaldo o repreendeu com uma chinelada, deixando-o com uma marca vermelha na altura da coxa por quase dois dias. Sem entender por que o pai o machucara, ele chorou por muitas horas e só parou quando o sono o nocauteou.
Sua vida mudou quando, no ano seguinte, ingressou na escola. Precisava conviver com crianças da sua idade para parar de pensar bobagem, dizia o pai, referindo-se à predileção do garoto pelo mundo cor de rosa.
Ao conviver com crianças da sua idade, Rodrigo descobriu que era diferente. Fisicamente ele se igualava a José, Antônio e Mateus, mas sua cabeça e seus pensamentos eram iguais aos de Rosa, Maria e Lourdes. Todos os dias ele chegava em casa e chorava em seu quarto. Os meses passaram e ele continuava sem conseguir enturmar-se com seus companheiros. Sentia-se isolado, os meninos não o aceitavam porque ele era diferente, e as meninas não se aproximavam porque, para elas, ele era um menino.
Aos oito anos, ele se olhava no espelho e não se reconhecia. Sentia uma tristeza profunda e não entendia qual era o seu problema. A mãe percebia a sua angústia, mas o medo de lidar com a realidade a mantinha afastada do filho pequeno.
Um dia, quando ela estava colocando roupas limpas em seu guarda roupa, ele a questionou sem rodeios.
“Mãe, porque eu não sou normal?”
Estefânia engoliu em seco e sabia que não teria respostas para ele, então decidiu mais uma vez ignorá-lo. Rodrigo já não sabia o que fazer, sentia-se preso a um corpo que não era seu e, com sua pouca idade, idolatrava a morte, como se essa fosse a saída para seu martírio.
Alguns anos se passaram e sua tristeza era imensa. Cada vez mais retraído, ele não tinha diálogo com a mãe, muito menos com o pai, que o rejeitava a todo custo. A relação com seus irmãos também era distante devido à diferença de idade. O mais novo depois dele era oito anos mais velho.
Em uma sexta feira à noite, o pai havia saído para beber com uns amigos, os irmãos também estavam fora de casa e Rodrigo, como sempre, sozinho em seu quarto, enquanto Estefânia, aproveitando que ninguém usava o único televisor da casa, via um programa que iniciara logo após a novela. O menino escutou algo que lhe chamou atenção e saiu sem fazer barulho de seu quarto.
Ao se aproximar da sala, deteve-se no corredor e viu que a mãe estava concentrada no que era transmitido. Era um programa jornalístico sobre crianças transexuais e suas lutas diárias para conviver com suas realidades. Rodrigo ficou anestesiado ao escutar algo sobre o tema e conseguiu de imediato identificar-se com todos os relatos que testemunhava.
Rodrigo via meninos e meninas que se reconheciam no gênero oposto e que tiveram coragem de contar suas histórias para seus pais e pessoas de confiança, mas ele não tinha ninguém. Já tentara diversas vezes falar com sua mãe, sem mesmo entender o que ele tinha. Precisava de respostas, precisava compreender seu corpo e por que se sentia tão diferente. Ele olhou para a mãe, que, de costas, não escondia a aflição de haver descoberto o verdadeiro segredo de seu menino. Constantemente ela enxugava suas lágrimas, que se desprendiam em descontrole, sabendo que por 12 anos não fora capaz de ajudá-lo a encontrar o seu verdadeiro eu.
Quando o programa acabou, Estefânia desligou a televisão e se manteve sentada no sofá tentando se recuperar emocionalmente do abalo que sofrera e, ao se levantar e se deparar com Rodrigo, que a encarava, ela voltou a desabar em um choro autêntico. Com medo, ele recuou alguns passos, mas ela abriu os braços e o chamou. Surpreso, ele correu, pulando o encosto do sofá, e se envolveu em seus braços, sentindo pela primeira vez o conforto de sua mãe.
“Eu sou assim, mãe”! Ele repetia sem parar, enquanto encharcava o vestido dela com seu pranto antes reprimido.
Foram necessários mais de 4380 dias para que ele finalmente expelisse seus sentimentos e tivesse a empatia de sua mãe e, mesmo sabendo que isso não o libertaria tão cedo de sua clausura carnal, ele já se sentia um pouco mais aliviado ao poder compartilhar seu segredo com ela.
Estefânia não conseguiu dormir nessa noite. Não sabia lidar com a situação e nem tinha instrução suficiente para buscar ajuda. Há anos ela vinha se preparando, sabendo que o filho um dia assumiria ser gay, mas nunca lhe passara pela cabeça que a sua situação fosse ainda mais complicada. Ela tinha consciência de que não poderia dividir isso com o marido, nem mesmo com os outros filhos, que eram tão conservadores quanto o pai.
Foram precisos muitos dias para que ela se acostumasse com a ideia de que não tivera um filho, e sim uma filha, e Rodrigo, em um momento de muita confidencialidade, pediu-lhe que o chamasse de Cíntia. Ele não podia prever o futuro e sabia que ainda estava muito longe do dia em que pudesse se vestir e se comportar como uma menina, mas agora, com a ajuda de sua mãe, ele sentia-se mais amado e acolhido e isso lhe dava forças para seguir adiante em busca de sua verdadeira liberdade.

Que lindo Luciana!!!
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Obrigada Mãe
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Muito importante a divulgação desse conto pois revela de uma maneira muito singela uma realidade que atinge o mundo inteiro. Mudar as pessoas mudando os sentimentos é mais eficaz do que tentar mudar atingindo a razão. Parabens!
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Que lindo! De todos os contos que já li relativos a esse assunto, com certeza foi o que mais gostei! Parabéns! Bj
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Obrigada Lelena,
Você sempre muito querida em seus comentários,
Beijo.
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