Era dia de contar histórias. José reuniu os netos, com idades que variavam de treze a dezoito anos. Esse era um costume que adotara anos antes para conseguir interagir com a garotada, que, a cada dia, se interessava menos pelas relações interpessoais.
Criara o ritual quando os netos ainda eram pequenos e fazia questão de reunir a garotada para o que chamava de roda interativa.
No inicio, dedicava os minutos à leitura de histórias antigas de Monteiro Lobato, e a criançada se deliciava com os contos do Sítio do Pica Pau Amarelo. “São histórias atemporais”, dizia ele. À medida que foram crescendo, começaram a se interessar pelas vivências do avô, nascido no final do século anterior, no ano de 1975.
Naquela semana, em um dia de maio de 2050, uma notícia lida nos jornais chamou atenção de José, fazendo-o recordar-se de sua infância, de uma época que não desejava viver novamente. A chamada dizia: “Governo teme a volta da hiperinflação.”
Naquele dia, logo após o almoço, os netos se esparramaram pelo sofá da casa do avô. Ansiavam pela história da vez.
“Vocês já estudaram sobre hiperinflação?” – José perguntou.
Após o silêncio, ele prosseguiu.
“Pois bem! Hoje vou lhes contar de uma época quando o dinheiro não valia nada, enquanto a comida era o melhor investimento.”
Todos se entreolharam curiosos e se ajeitaram no sofá, pois sabiam que escutariam mais uma história interessante do avô, que não demorou para iniciar a prosa.
“Era início dos anos 1980, eu tinha uns sete ou oito anos. Eu e meus irmãos aguardávamos mamãe chegar do trabalho. Sabíamos que seria uma longa noite, pois ela já havia nos avisado que iríamos ao supermercado e, normalmente, esse era um programa que levava pelo menos quatro horas.
No caminho, percebemos que muitas outras famílias seguiam o mesmo destino que nós. Afinal, esse era o programa da maioria dos assalariados que precisavam garantir o abastecimento do lar, antes que o dinheiro perdesse gradativamente o seu valor.
No hipermercado lotado, zanzávamos pelos corredores. Cada um de nós se ocupava das compras em uma seção específica. Enquanto um ia para os enlatados, outro seguia para o hortifruti e eu e mamãe enfrentávamos a fila das carnes.
Independentemente da gôndola de destino, tínhamos sempre que estar atentos aos ágeis funcionários que remarcavam os preços de hora em hora, seguindo a inflação do dia. Quando víamos um desses funcionários com a máquina de etiquetar preços na mão, precisávamos correr para alcançar os produtos ainda não remarcados.
Depois da saga, precisávamos enfrentar a segunda parte do processo que garantiria a nossa alimentação mensal. A comida comprada precisava ser cozinhada e congelada para não estragar. Um trabalhão para a bisavó de vocês. Apesar de contar com a nossa ajuda, no fundo era ela que fazia tudo. Eram pelo menos dois dias nos quais ela se enfurnava na cozinha, preparando uma variedade enorme de pratos, em sua maioria à base de carne moída, a proteína mais barata da época.
Em sua cozinha, o elegante strogonoff dava lugar ao primo humilde strogomilho, uma versão similar na qual a carne moída substituía o filé mignon e o milho, o champignon. Outra criação da mamãe era o hambúrguer surpresa, que entrava no lugar do sofisticado filé suprise, prato preferido das crianças nos restaurantes da cidade. Assim era a sua criatividade naqueles tempos difíceis.
Nos finais de semana dedicados à gastronomia, a nossa cachorrinha ficava enlouquecida. A mistura de cheiros a perturbava, e ela passava o dia inspecionando e limpando o chão da cozinha.
Certa vez, era madrugada quando minha mãe terminou de cozinhar e lavar a louça do exaustivo final de semana. A maior parte dos alimentos preparados naquela tarde ainda estava quente, impedindo-a de congelá-los. Sem alternativa, ela trancou a cachorrinha na cozinha, deixou os alimentos cobertos por um pano sobre a mesa da sala de jantar e foi dormir. Só não imaginávamos que aquela seria a última noite da nossa cadela em nossa casa.
No dia seguinte, era cedo quando escutamos gritos vindo da sala. Corremos para ver o que se passava e encontramos nossa mãe caminhando ao redor da mesa. Sustentava as mãos sobre o rosto e chorava em desespero.
Sob a mesa, as comidas estavam reviradas, haviam sido abocanhadas pela cachorra que, de alguma maneira, conseguira se livrar da porta fechada da cozinha. Alguns pratos foram devorados, outros somente lambidos, mas todos tiveram que ser inutilizados.
Para piorar a situação, a cachorra passou mal ao comer tantos alimentos aos quais não estava acostumada e emporcalhou a casa toda, inclusive um tapete felpudo de pele de carneiro, que mamãe trouxe do sul do país em uma viagem a trabalho.
Nossa mãe queria matar o animal. Seus olhos revelavam tristeza e desespero. Naquele dia, ela saiu de casa para o trabalho e disse: Quando voltar, não quero ver esse bicho aqui.”
“E aí vovô! Vocês deram a cachorra?” – Um dos netos perguntou.
“Não tivemos outra opção. ”- José respondeu.
“Sorte da bisa que isso não aconteceu hoje em dia, senão ela iria presa por abandono de animais.” – Comentou o outro neto.
“Sorte da mamãe.” – Repetiu José.

Muito bom. Criativo e hilário, se imaginarmos a situação, descrita com precisão e despida de superficialidades. Objetiva e contundente. Parabéns! Uma observação que me ocorreu, sendo o ano de 2050 e considerando a invasão chinesa em nosso país atualmente, imaginei que o final da cachorrinha seria na panela. 😁
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Kkkk perfeito!!!
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Amo seus livros e contos👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
Enviado do meu iPhone
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História mto interessante, levando o leitor a imaginar um outro final. Consegui
Parabéns
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