LIÇÃO DE VIDA

Geeta chegou de viagem e encontrou as duas filhas adolescentes vendo televisão na sala. Passara a semana trabalhando em Dubai. Sentia-se cansada pelo estresse momentâneo no trabalho. As filhas se levantaram e a beijaram, mas logo regressaram a seus lugares, sem demonstrar euforia pelo seu regresso. 

Na hora do jantar, a família se sentou à mesa. Trocaram algumas palavras, mas as adolescentes não eram de conversa. Por mais que Geeta tentasse, era difícil conseguir arrancar novidades da dupla. 

Quando estavam por terminar, a filha mais velha comentou que a vizinha havia comprado um tênis lindo e que queria um igual. Quando a menina falou o valor do sapato, Geeta se assustou e respondeu que não tinha cabimento pagar aquele montante por um par de tênis. A jovem contestou as razões da mãe, sabendo que ela poderia arcar com tal valor, e deixou a mesa irritada,  para se trancar em seu quarto. 

Geeta era executiva de uma companhia indiana, responsável pelo planejamento e pela implantação de call centers em diversas empresas multinacionais. Tinha recursos, mas também tinha valores que a impediam de ceder aos caprichos da filha de 16 anos.  

Seu sangue executivo fora herdado de seu pai, Babu, nascido no final da década de 1920, em uma aldeia do sul da Índia. Nessa época, o país ainda era uma colônia britânica regida pelo rei George V. 

Desde cedo, Babu demonstrou interesse pela política ao vivenciar o movimento de independência da Índia. Na ocasião, foi inspirado por líderes políticos e espirituais, sendo um deles o grande mestre Gandhi, com quem, em uma ocasião, se reuniu para debater sobre os problemas sociais do país. 

Formou-se em engenharia pouco tempo depois de conhecer oficialmente a mulher com quem se casaria. Um matrimônio arranjado por meio de um intermediário contratado por sua família para encontrar uma candidata da sua casta. No encontro oficial de apresentação das famílias, Suresh fez questão de cantar para Babu, pois esta era uma de suas grandes habilidades. Detentora de uma voz suave e angelical, a mulher o encantou e eles, felizmente, apaixonaram-se à primeira vista. 

O casamento aconteceu meses depois de sua formatura e não demorou para que os filhos chegassem. Primeiro, os dois meninos e, por último, Geeta, a única mulher. Todos nasceram em Mumbai, onde moravam em uma casa acolhedora, em uma área nobre da cidade. Babu exercia um alto cargo de gestão em uma indústria petroleira, o que lhes garantia a vida confortável. 

Numa tarde, o filho mais velho brincava com os vizinhos do condomínio quando um deles chegou com um lindo skate novo. O irmão de Geeta se apaixonou pelo brinquedo. Suas quatro rodas vermelhas eram inaudíveis, deslizavam suavemente pelo chão de concreto da rua principal. A prancha de carvalho, diferente do preto tradicional de todos os outros artefatos, levava uma pintura colorida, abstrata. “É a coisa mais linda que já vi.”, dizia ele. 

Na mesma noite, o rapaz pediu a Babu um skate igual ao do vizinho e para a sua surpresa a resposta foi não. Frustrado, o rapaz insistiu e perguntou o porquê disso. Decepcionado com a reação do filho, Babu respondeu friamente que no domingo seguinte ele teria o motivo da negação.

No dia estabelecido, Geeta e seus irmãos se aprontaram, assim como combinado. Finalmente iam descobrir as razões que o pai tinha para não ceder ao pedido do filho adolescente. No caminho, Geeta sentia frio na barriga pela tensão que o trajeto lhe causava. Passavam por lugares desconhecidos e que, em sua percepção, eram feios. A única coisa que a confortava era a companhia do pai e dos irmãos.

Quando chegaram ao destino, ela correu para o pai e abraçou suas pernas. Encostou o rosto em seu quadril para cobrir o nariz. Sentia um cheiro desagradável, uma mistura de lixo e esgoto. Ele a carregou nos braços, tentando tranquilizá-la, mostrando que estava tudo bem.

Babu também se sentia angustiado, mas precisava fazer aquilo. Precisava mostrar aos filhos a realidade da Índia. Por terem nascido em uma família de posses, eles não conheciam a vida de seus conterrâneos. Babu era um homem caridoso e contribuía financeiramente para diversos projetos sociais. Mesmo assim, vivia diariamente um conflito interno ao saber que a maioria da população hindu sobrevivia com uma renda abaixo de US$ 1,50 por dia. 

Assustada, Geeta se viu no centro de Dharavi, uma das maiores favelas do mundo, com mais de um milhão de habitantes. A comunidade foi formada na década de 1960, quando imigrantes sem recursos se instalaram na região.  Ela olhou ao seu redor e viu dezenas de crianças brincando em becos sujos, estreitos e sem pavimento. Apesar da falta de estrutura, a criançada parecia feliz. Percebeu que todas estavam sem sapatos e tinham pés cascudos e enrugados.

O pai se virou para eles e disse.

– Estão vendo essas crianças brincando descalças? Vocês sabem por que elas estão assim?  Porque elas não têm sapatos para calçar. 

– Vocês precisam agradecer o que têm: sapatos, meias, chinelos, brinquedos.

E então ele olhou sério para o filho mais velho, o que havia insistido para ganhar um skate igual ao do amigo, e disse: 

– Quando você tiver que se comparar com outras crianças, não se compare com as que têm mais do que você. É por isso que não vou comprar o skate. 

Mais de trinta anos separavam a experiência que vivera em Dharavi do jantar em sua casa quando sua filha lhe pediu um par de tênis da moda. Mas aqueles momentos ainda eram vivos em sua mente e foram um divisor de águas em sua vida. 

Naquela noite, deitada na cama, Geeta refletia sobre o que passara no jantar e sabia que havia chegado a hora de dar um passeio com suas duas filhas.

Assista o conto narrado no meu canal no youtube

4 comentários em “LIÇÃO DE VIDA

  1. Com suas vivências em outros países sempre fico a meditar sobre a origem das histórias. Se são reais ou pura ficção? Acabo misturando as idéias. Imagino que com você deve ser assim também. E vamos em frente que atrás vem gente!

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