Hierarquia Necessária

Não canso de pensar nas experiências vividas em nossa trajetória no exterior. É mais forte do que eu o desejo de transcrever para o papel as histórias sobre as diferenças culturais às quais fomos apresentados ao longo desses 11 anos em que vivemos fora do Brasil. 

Para começar essa espécie de série de narrativas culturais, quero contar como se deu um dos grandes ensinamentos, logo nos primeiros meses dessa longa jornada. Esse conhecimento foi adquirido através da relação que tínhamos com o motorista que trabalhou conosco quando moramos no Cazaquistão.  

Tudo começou por um tropeço, já no primeiro dia no novo país, quando o conhecemos. Ele havia sido designado pela companhia para atender a nova família brasileira, por ser o único motorista capaz de falar um pouco de inglês, tornando a nossa adaptação a mais suave possível. Seu primeiro dia de trabalho foi em um domingo, em pleno inverno asiático. 

Na ocasião, apesar do dia lindo que fazia, a temperatura se mantinha abaixo de zero grau. Buscou-nos no hotel onde estávamos hospedados um pouco antes do almoço. Mesmo exaustos, devido a longa viagem, precisávamos sair um pouco para evitar que dormíssemos o dia todo, já que ainda estávamos com nossos relógios biológicos no horário do Brasil, com uma diferença de 11 horas. Tudo era novidade para nós. Além do clima, a arquitetura da cidade, a sinalização em alfabeto cirílico e as vestimentas, observadas até então somente em filmes russos. Os meninos olhavam atentos para todos os lados, como se de alguma maneira estivessem comparando os países. Meu filho mais novo, de apenas um ano de idade, parecia uma cebola, cheio de camadas, resultado de uma mãe precavida e exagerada. A pobre criatura, mal conseguia se mexer. 

Dissemos a Jaken, o motorista, que queríamos comprar dois trenós, achávamos que seria divertido para os meninos experimentarem algo diferente. Assim que os compramos, Jaken nos levou a um parque onde pudemos puxar as crianças pelo gelo, com a exclusiva intenção de proporcionar a eles uma experiência única e divertida e, assim, cativá-los já no primeiro dia. 

Na hora do almoço, pedimos ao motorista que nos levasse a um restaurante com comida típica para podermos experimentar as iguarias locais. Ele, acostumado a levar e trazer os estrangeiros da companhia aos restaurantes da cidade, conhecia o lugar perfeito para essa primeira impressão e foi nesse exato momento que cometemos nosso primeiro erro, estragando por completo a nossa relação com ele.

Ao chegarmos ao restaurante e nos acomodarmos em uma mesa, ficamos com pena por ele estar trabalhando em um domingo e o convidamos para que se sentasse conosco. Não tínhamos ideia de que estávamos comprometendo todo um relacionamento hierárquico a partir desse gesto tão natural. 

Não sabíamos que o Cazaquistão é formado por uma sociedade que valoriza e preza a hierarquia como essência nas relações interpessoais. Depois de se sentar à mesa conosco, e de compartilhar aquele momento íntimo e privado, Jaken passou a se comportar como membro da família. A partir de então, foram inúmeras as situações vividas que comprovam essa sensação de intimidade que criamos. Algumas, além de incômodas, de certa maneira eram constrangedoras também, pois muitas vezes ele se comportava como se fosse o meu marido, mantendo-se o tempo todo ao meu lado. 

Por conta de minha rotina, eu era a pessoa que mais convivia com ele. Sempre que estávamos a caminho de algum lugar, para puxar assunto durante o trajeto, ele mantinha um diálogo como se fosse um amigo íntimo. Perguntava-me quanto pagávamos de mensalidade pelo colégio dos meninos ou quanto era o aluguel de nossa casa ou até mesmo, qual era o salário do meu marido. Para todas essas perguntas indiscretas, dava sempre a mesma resposta: “Eu não sei, é o Marcio que vê isso”, pois sabia que não perguntaria a ele. Para Jaken, eu era uma dondoca alienada que nunca sabia de nada, uma verdadeira inútil. Para mim, minhas negativas apenas tinham o intuito de resguardar a nossa privacidade.  

A primeira vez em que fui ao supermercado, ele se ofereceu para entrar comigo, para me ajudar a identificar os produtos com rótulos em russo. Agradeci imensamente, já que, embora para distinguir as marcas globais não houvesse problema, os produtos locais  sim eram um grande desafio. Como poderia diferenciar o que era o creme de leite do leite condensado ou do leite evaporado. No início, sua companhia era necessária, até que eu me familiarizasse com toda aquela gama de produtos de nomes confusos, mas ele acabou tomando gosto em me acompanhar, chegando muitas vezes ao cúmulo de opinar e questionar sobre as minhas escolhas. 

Foi com o tempo que descobrimos que nós havíamos sido os responsáveis por criar o “monstro” Jaken. Tudo se desenrolou a partir do nosso gesto amável de convidá-lo a almoçar conosco, lá no primeiro dia. 

Comentando com uns amigos sobre o comportamento dele, fomos alertados sobre a tal hierarquia que precisávamos ter mantido. Jaken era nosso motorista e, no Cazaquistão, motoristas não se sentam à mesa com os patrões. 

Aprendemos na marra um pouco da cultura cazaque e passamos a estar mais atentos para não cometer o mesmo erro. Quanto a Jaken… Bem, ele acabou sendo despedido! O relacionamento após os primeiros meses se tornou insustentável e irreversível. O estrago já havia sido feito. O motivo principal para nossa decisão de dispensá-lo foi um tanto tragicômico, que vale uma narrativa exclusiva para contar o fato. 

Por hoje, fica o relato de uma experiência cultural vivida do outro lado do mundo, em uma época em que não imaginávamos o tamanho da estrada que tínhamos pela frente e quantas diferenças culturas ainda nos esperavam.   

5 respostas para “Hierarquia Necessária”.

  1. Ótima crônica. Realmente não deve sser fácil encontrar uma cultura tão diferente da nossa…

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  2. Avatar de Arnaldo Pereira Ferraz
    Arnaldo Pereira Ferraz

    Vivendo e aprendendo! Ainda bem que foi no início. Mas certamente outras experiências virão. Viver é sempre aprender. Que bom que é com experiências viajando pelo mundo.

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  3. Muito bom o texto, citando essa desconfortável experiência. Tudo fruto de culturas totalmente diferentes é desconhecida para os novos moradores do Cazaquistão. Valeu mto a e xperiência para quem estava deixando o Brasil e chegando a terra estranha, cheios de boas intenções. Serviu a lição, claro.

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  4. Avatar de Ana Cristina Ashton de A. Baeta
    Ana Cristina Ashton de A. Baeta

    ESTOU ADORANDO APRENDER OS DIVERSOS COSTUMES DE DIFERENTES CULTURAS. PARABÉNS!

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