Flores, Água e Reza.

Raquel andava atrás do filho, Tito, de apenas seis anos. Há dias que discretamente o acompanhava, desde que percebera seu novo ritual, quase um tique, todas as vezes que atravessava a sala de televisão para ir ao seu quarto. A sala de televisão era passagem obrigatória de quem vinha da área social e se dirigia a qualquer um dos três dormitórios do confortável apartamento na região de Mangabeiras, em Belo Horizonte.

Ao entrar na sala, ele sempre virava a sua cabeça para a direita e fixava seus olhos no canto superior da parede oposta à direção a que ia. Um comportamento diferente, adquirido nas últimas semanas. O ritual, que foi iniciado de maneira esporádica, em pouco tempo tornou-se uma obsessão incontrolável, deixando-a assustada e receosa. Não havia uma só vez na qual o pequeno Tito não passasse pelo local sem observar o canto da sala. Ela tentou de tudo, distraí-lo com conversas corriqueiras no momento que passavam por ali ou carregá-lo em uma posição que fosse desconfortável para que ele realizasse o dito movimento, mas nada funcionava.

A inquietude de Raquel tinha fundamento. Quando ela tinha a mesma idade que ele, sofreu por quase dois anos a agonia de experimentar situações sobrenaturais inexplicáveis, as quais se manifestavam de duas maneiras predominantes; sentia a presença de pessoas as quais não podia ver, e muitas vezes as escutava também. 

Na ocasião, a família demorou a perceber o que acontecia com ela, até serem alertados de que a menina tinha uma “porta aberta”, um canal de comunicação com o mundo espiritual. Ela contava e recontava histórias desconhecidas com personagens estranhos. Externava narrativas utilizando palavras excêntricas. Vocábulos antigos, ordinários em um outro tempo. Expressões que seguramente eram desconhecidas para uma menina daquela idade. 

Sua mãe foi orientada a procurar um terreiro de umbanda, mas o marido, por ser um homem muito cético, recriminou-a e não permitiu que a menina fosse levada à sessão espiritual. Foi preciso um esforço enorme, além de muitas conversas, para convencê-lo de que ela se comunicava com algo inexplicável, que sofria por não saber lidar com essas manifestações e que precisava de ajuda. Somente assim, depois de alguns meses, ele compreendeu a gravidade da situação e finalmente puderam ampará-la. 

Foram necessárias algumas visitas ao lugar, além de constantes orações, somadas às rosas brancas para atrair boas vibrações, e a um copo de água para purificar o ambiente. Tudo era harmonicamente trabalhado para que Raquel se livrasse desse tormento. 

Passados os anos, ela nunca mais sentiu tais manifestações e pouco se lembrava de como havia sido todo o processo, retinha apenas alguns “flashes” de recordações e as histórias que sua mãe lhe contava. Mas a verdade é que preferia não pensar muito no assunto. Até que o comportamento do filho resgatou aquele sentimento que estava adormecido, por isso tinha receio de que ele estivesse passando pelo mesmo processo que ela havia experimentado.

Aos poucos, foi se aproximando do menino. Tentava entender os motivos que ele tinha para repetir sempre o mesmo ritual. Fazia-lhe perguntas vagas, do tipo “Você gosta de morar aqui?”, “Você é feliz nessa casa?”, ou até mesmo “Tem alguma coisa que te incomoda nessa casa?”, mas as respostas de Tito eram sempre as mesmas e não indicavam nada de preocupante. 

Sem conseguir decifrar o comportamento de Tito, Raquel resolveu utilizar os mesmos recursos os quais foram usados em seu tempo por sua mãe. Comprou uma dúzia de rosas brancas, colocou-as em um vaso de flores e o posicionou no alto da estante, na sala de televisão. Rente a elas, deixou um copo de água potável, e rezou. Criou uma nova rotina em seu dia. Ao acordar e antes de dormir, rezava um Pai Nosso e uma Ave Maria, ali, junto às flores, pedindo para o que quer que estivesse perturbando seu filho tomasse seu rumo e o deixasse em paz.  

Passados vários dias, ela percebeu que o menino continuava seguindo os mesmos procedimentos de sempre ao atravessar a sala. Como se suas súplicas não tivessem surtido efeito. Ao comentar com o marido, que, até o momento, não havia percebido o comportamento do filho, nem sequer notado a nova decoração floral da sala familiar, ele disse para ela não se preocupar, que ele descobriria o que causava a conduta misteriosa do filho.

Alguns dias depois, o marido mostrou-lhe uma foto no seu celular, a prova da diferente conduta do pequeno. Ao analisar a imagem, Raquel não podia acreditar que fora esse o motivo que lhe tirara o sono dos últimos meses. Na tela do celular, a fotografia de uma sombra projetada no canto da sala. O vulto na parede capturado pelo marido fora ressaltado por uma linha vermelha, indicando a silhueta do que o menino dizia ser um lobo. 

O marido contou-lhe que foi direto ao assunto com Tito, perguntando o que ele via no canto da parede. De maneira segura, ele contou ao pai que algumas vezes conseguia ver a sombra de um lobo na parede e achava legal. Incrédulo com a simplicidade da resolução do mistério, o marido iniciou o mesmo ritual do filho. Queria provar para a esposa que ela procurava “cabelo em ovo”, imaginando um desfecho fantástico e misterioso, mas tudo não passava de um inocente delírio criado pela sobra de uma árvore projetada pela luz do sol. 

Envergonhada por seu exagero imaginativo, mas ao mesmo tempo aliviada por suas angústias não serem nada além de uma fantasia infantil, ela decidiu deixar de forma permanente as flores frescas e a água purificadora na estante da sala, afinal, rezar duas vezes ao dia pedindo proteção divina não fazia mal a ninguém.   

7 comentários em “Flores, Água e Reza.

  1. Muito interessante. Gostei da história e da solução final, desvendando a “ assombração“ que
    o Tito via na parede da sala
    Parabéns!

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  2. Muito boa historia, bem narrada! Gostei da mãe ter dado ter percebido e dado importancia ao comportamento da criança, releva certos comportamentos podem acarretar sofrimentos e marcas evitáveis! Parabéns!

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  3. Muito bom, bem escrito, com temática interessante e exposta de forma a atrair a atenção do leitor com um suspense enveredando ao sobrenatural e que termina de forma banal, que beira o cômico. Tudo que um bom texto precisa ter para se sustentar perante o leitor, de forma a cativá-lo. Parabéns!

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